
Denise De Rocchi
Ao retomar o trabalho de pesquisa após as celebrações de fim de ano, encontrei na revista Foreign Policy uma pergunta crucial, expressa no título do artigo de Howard French: por que estamos ignorando as críticas à Israel quanto a Direitos Humanos? No texto, o autor observa que a mídia estadunidense deu pouco destaque ao relatório das Nações Unidas, divulgado na última semana de 2024, que aponta que os ataques israelenses provocaram a destruição do sistema de saúde em Gaza e a morte de pacientes palestinos e dos profissionais que os atendiam, violando leis humanitárias e tratados de Direitos humanos.
French, que é professor de Jornalismo na Universidade de Columbia, aponta que a falta de atenção a uma situação clara de violação dos direitos humanos e de normas internacionais é mais evidente na mídia norte-americana do que na europeia. No entanto, ele não desenvolve no texto as razões para isso.
O viés na cobertura do conflito Israel-Palestina é tema de diversos estudos ao longo de anos, que em sua maioria apontam uma tendência pró Israel nas notícias. No caso estadunidense, devemos considerar que a relação especial EUA x Israel é uma prioridade de política externa, havendo grupos organizados que pressionam os Estados Unidos para que mantenham este alinhamento (o que inclui votos em organismos internacionais e fornecimento de material militar)[1]. A cobertura jornalística acompanha a política, com muitas notícias sobre Israel [2].
A perspectiva palestina não recebe a mesma atenção que a israelense, por motivos que vão de questões operacionais (como dificuldades de manter um correspondente in loco durante todo o conflito e o pouco conhecimento do idioma árabe) a escolhas editoriais. Neste aspecto, as perspectivas da diretoria e da equipe da redação podem ser diferentes e foi isso que ocorreu na CNN desde outubro de 2023.
Diversos profissionais da redação da emissora manifestaram insatisfação com as diretrizes, vindas da sede em Atlanta, sobre como o conflito deveria ser retratado. As queixas, trazidas a público em reportagem do The Guardian, incluem orientações para que o sofrimento israelense tivesse destaque e a constatação de que de informes das forças militares e governo de Israel eram replicados de forma acrítica. Queixas semelhantes foram relatadas pela jornalista Ana Maria Monjardino, que foi produtora na redação da CCN International no Reino Unido. Por diversas vezes, as fontes palestinas que ela sugeriu foram substituídas nos debates por “alternativas liberais israelenses”. Ao perceber que suas tentativas de dar um mínimo de equilíbrio à cobertura não surtiam efeito, ela se demitiu.
As situações descritas acima podem nos trazer alguns insights sobre como é feita no Brasil a cobertura deste momento do conflito (como prefiro chamar, por entender que ele é muito anterior a outubro de 2023). Em geral, apenas os grandes jornais e emissoras de TV mantém correspondentes internacionais próprios e os colocam nas grandes metrópoles. Este é um ponto mais sensível na cobertura de conflitos armados e mais ainda em relação à Gaza, que vive um bloqueio há mais de década. Tivemos correspondentes brasileiros em ação, mas estes conseguiram no máximo chegar a Israel ou países vizinhos, como o Líbano. A parte mais perigosa da cobertura, em meio aos bombardeios israelenses, coube aos repórteres palestinos. O Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ) contabiliza 169 profissionais mortos na realização deste trabalho, muitos deles de nacionalidade palestina.
Houve uma certa mudança de tom na cobertura brasileira, conforme o número de vítimas fatais foi crescendo, até ultrapassar as 40 mil pessoas, e as imagens de cidades destruídas e de famílias passando fome se avolumaram. Alguns personagens frequentemente convidados a analisar o conflito, defendendo as ações israelenses, deixaram de ser onipresentes nos programas jornalísticos. Em seu lugar, foram chamadas outras fontes, algumas delas israelenses com posições políticas menos identificadas com o governo Netanyahu, mas não os integrantes da comunidade palestina, que é numerosa no Brasil, o que se assemelha ao que Monjardino vivenciou na CNN britânica.
Enquanto este texto era construído, a cobertura sobre Gaza esteve focada nas negociações para troca de reféns e no impacto da posse presidencial sobre a política externa dos EUA. A proposta bizarra e colonialista de Trump, de retirar a população de Gaza para dar lugar a um empreendimento imobiliário de luxo, recebeu fortes críticas em jornais e nos canais de notícias no Brasil. Em geral, a mídia brasileira compreendeu a ideia como o que ela é: uma violação ao direito dos palestinos, direito esse já reafirmado em resoluções da ONU.

Nas abordagens, houve quem entrevistasse o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben, e quem fizesse programas ou textos mais analíticos, com professores e pesquisadores que trouxeram embasamento histórico sobre as origens de Gaza e avaliações sobre interesses políticos (regionais e extra-regionais) envolvidos na proposta de Trump. Algumas coberturas vieram também com sabor amargo: foi o caso de uma emissora de TV, cujo editor se referiu à Gaza como “um abacaxi que ninguém quer descascar” e cujo comentarista classificou os palestinos em geral como uma ameaça à Israel.
Ainda que parte da imprensa e da mídia brasileira esteja agora mais atenta às violações de direitos humanos durante os ataques à Gaza, como questionou o professor French, citado no início do texto, os palestinos ainda têm pouco espaço na cobertura jornalística por aqui. Convido quem está lendo este texto a fazer também a observação empírica: quantas vezes você encontra palestinos falando sobre Gaza em reportagens ou entrevistas?
Durante minhas reflexões, lembrei da pensadora Gayatri Spivak, autora do clássico artigo “Pode o subalterno falar?”. A crítica que ela traz, sobre indivíduos e grupos subalternos (os excluídos, os que estão em posição inferior nas relações de poder politico-econômico) não serem escutados, a não ser quando representados por alguém legitimado, se aplica ao caso em questão. Outras vozes, de jornalistas e de pesquisadores, defenderem os direitos de um grupo não é o problema: o problema é os indivíduos deste grupo não encontrarem espaço para falar por si mesmos.
[1] Em relação aos grupos de pressão e à política externa, há um estudo clássico de Mearsheimer e Walt, The Israel lobby and the US foreign policy.
[2] Um dos estudos sobre a atenção dispensada pelos maiores jornais dos EUA a Israel é o de Yarchi, M., Cavari, A., & Pindyck, S. (2017). Covering foreign news – intensity and topics: the case of the American coverage of Israel 1981–2013. The Journal of International Communication, 23(1), 115–137. doi:10.1080/13216597.2017.1299776
Referências:
CBN. 'Mundo está cansado de tantas aventuras', diz embaixador da Palestina no Brasil sobre ideia de Trump. CBN Notícias. 6 de fevereiro de 2025. Disponível em https://cbn.globo.com/programas/jornal-da-cbn/entrevista/2025/02/06/mundo-esta-cansado-de-tantas-aventuras-diz-embaixador-da-palestina-no-brasil-sobre-ideia-de-trump.ghtml
CPJ. Journalist casualties in the Israel-Gaza war. Comitte to Protect Journalists. 4 de fevereiro de 2025. Disponível em https://cpj.org/2025/02/journalist-casualties-in-the-israel-gaza-conflict/
EL AMINE, Rayan. The Unprecedented Killing of Journalists Is Affecting Coverage of Gaza. News Line Magazine. 11 de janeiro de 2024. Disponível em: https://newlinesmag.com/reportage/the-unprecedented-killing-of-journalists-is-affecting-coverage-of-gaza/
ESTANISLAU, Lucas. Um ano cobrindo o horror em Gaza (e 20 cobrindo a Palestina). Brasil de Fato. São Paulo, 11 de outubro de 2024. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2024/10/11/um-ano-cobrindo-o-horror-em-gaza-e-20-cobrindo-a-palestina
FRENCH, Howard. Why Are We Ignoring Human Rights Criticism of Israel?. Foreign Policy. 3 de Janeiro de 2025. Disponível em https://foreignpolicy.com/2025/01/03/israel-gaza-human-rights-criticism-genocide-media/
FULGÊNCIO, Caio. Como é a cobertura da guerra entre Israel e Hamas nas redações brasileiras. Meio e Mensagem. 19 de outubro de 2023. Disponível em https://www.meioemensagem.com.br/midia/guerra-israel-hamas-nos-jornais-brasileiros
MCGRAEL, Chris. CNN staff say network’s pro-Israel slant amounts to ‘journalistic malpractice’. The Guardian. 4 de fevereiro de 2024. Disponível em https://www.theguardian.com/media/2024/feb/04/cnn-staff-pro-israel-bias
MONJARDINO, Ana Maria. I Resigned from CNN Over its Pro-Israel Bias. Al Jazeera Medida Institute. 2 de janeiro de 2025. Disponível em https://institute.aljazeera.net/en/ajr/article/2989.
YARCHI, M., CAVARI, A., & PINDYCK, S. (2017). Covering foreign news – intensity and topics: the case of the American coverage of Israel 1981–2013. The Journal of International Communication, 23(1), 115–137. doi:10.1080/13216597.2017.1299776
Comentários